Educação

Dona de sebo no Gama aprende a ler

Por Isabella Alvim e Guilherme Cavalli da Redação do DF Agora – 18/09/2015


A história da analfabeta que encontrou no luto a força para voltar aos estudos

Cercada de 15 mil livros, uma mulher de 55 anos aprende a ler. No dia a dia, Dulcineia, que não conseguia ler, descobriu o desafio que daria novo norte para a vida: manter um sebo. As obras ocupam a casa 66 na quadra 22, Gama (DF), cidade com cerca de 140 mil habitantes, em que 2,27% das pessoas são analfabetas e 32,53% não terminaram o ensino fundamental, segundo pesquisa da Codeplan.

Em uma casa lilás de esquina, ela, de cabelos loiros e curtos, carrega no peito uma medalha de Nossa Senhora da Aparecida. Sorridente, Dulcineia, aluna do Ensino de Jovens e Adultos na cidade, reservou na casa um cômodo para contar a própria história. Ser dona de sebo nem sempre foi o sonho de Dulcineia. “Não gostava de trabalhar com livro e pra mim era um sacrifício ajudar meu marido”.  Hoje, cursando o segundo ano do Ensino Médio, conta das dificuldades de se relacionar com as obras no início de seu trabalho.  “Eu me sentia mal de pegar em livros”.

Em um cômodo de aproximadamente 40 metros quadrados, os livros amarelados pelo tempo contam histórias desde 1800 até os dias de hoje. Do francês clássico ao jurídico brasileiro, há obras de Machado de Assis e Monteiro Lobato em livros que carregam não apenas a própria história, mas também a de Dulcineia. E, diante de tantos livros, por que nunca aprendeu a ler? A explicação é que não foi a prioridade. Hoje é. “Minha vida sempre foi em função da filha e do esposo”, conta.

A foto antiga em uma moldura marrom entre estantes amarelas e livros de segunda mão lembra Dulcineia das alegrias e tristezas que mudaram o rumo da própria vida vida. O retrato congela a da troca de alianças, momento em que Dulcineia e Adhemar começaram a jornada juntos, aos 17 anos. Sem estudar desde os 15, passou a trabalhar como manicure.

“Montei um salão em casa para trabalhar. Sempre fui muito ativa. Meu esposo sempre admirou isso em mim”.

Luto

Emocionada, Dulcineia conta como o marido foi apaixonado por livros e dedicou a vida ao aprendizado. Realizou o sonho de abrir o próprio sebo, sempre rodeado de intelectuais “Quando os professores vinham ao Sebo, era uma festa”, lembra Dulcineia.

Após um ano e meio com o próprio negócio, quando começou a caminhar em meio as estantes, Dulcineia percebeu que o marido não estava bem. A necrose óssea obrigou o livreiro a engavetar parte da história junto aos livros. A doença o impossibilitou de permanecer trabalhando. “Ele chegava à livraria, fechava as portas e deitava no sofá passando mal”, lembra.  “Não tinha mais condição e precisamos fechar o sebo”, lamenta.

Do sofá do sebo, Adhemar passou a enfrentar movimentos limitados. “Ele não saía de dentro do quarto”.

Em agosto do ano passado, Adhemar morreu e deixou Dulcineia apenas na companhia dos livros.

Superação

Com 32 dias da morte do marido, Dulcineia decidiu dar um novo passo. “Ou eu morria de depressão, ou tomava um novo rumo na vida”. “Não é porque Adhemar tinha morrido que eu iria morrer junto com ele”. Em um recomeço, a esposa do livreiro decidiu voltar a estudar e deixou de alimentar a estatística de analfabetos. Da insatisfação com os livros ao amor ao conhecimento, a senhora da quadra 22 desejou e superou o luto ao seguir os passos do marido. “Eu quero estudar e quero provar para mim mesmo que eu sou capaz”.

A motivação veio da filha, Vanessa Sampaio. “Ela sempre me falava pra voltar a estudar, mas para mim era um sonho fora da realidade”, comenta. Assim como o sebo, o desejo de estar em uma sala de aula tornou-se realidade. Dulcineia procurou uma escola de Educação para Jovens e Adultos, onde se redescobriu. “Eu não via a hora de começar essas aulas”

Agora, a mulher que estava diante de 15 mil livros passou a dar valor às obras, antes motivo de sofrimento. Quando decidiu se aproximar dos professores, desta vez para estudar, Dulcineia encontrou dificuldades. “Uma das amigas me disse: Dulcinéia, o que você está fazendo aqui? Você é viúva, tem sua casa, tem um carrinho, sua filha já é casada, o que você está fazendo aqui?”. Persistente, Dulcineia tinha objetivos muito claros. “Eu quero conhecimento. Eu quero saber. Eu quero escrever um bom texto”.

Hoje, prestes a se formar, Dulcineia projeta os próximos passos. “Quando eu concluir uma faculdade, posso ajudar alguém a tirar esse medo de estudar”. Como vitória para essa jornada, Dulcineia deseja inspirar outras pessoas a vencer o desafio de abrir um livro. “Se eu fizer uma pessoa voltar para um banco de escola e sentir o prazer que eu sinto de estar aqui, pra mim já é uma vitória e já ficaria totalmente realizada”.

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Israel Carvalho

Israel Carvalho é jornalista nº. DRT 10370/DF e editor chefe do portal Gama Cidadão.

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